Que brasileiro não lembra de Carcará, a música que consagrou definitivamente este que é um dos maiores compositores brasileiros?
“...Mas quando chega o tempo da invernada No sertão não tem mais roça queimada Carcará mesmo assim não passa fome..."
Assim é a presença de João do Vale - como esse verso vigoroso - o
retrato da resistência sertaneja. Nascido em Pedreiras, no estado do
Maranhão, onde viveu até os doze anos, ocasião em que saiu para São Luiz
permanecendo aí dois anos. Em busca de seu destino parte em direção ao
Rio de Janeiro, não sem antes registrar uma curta passagem pela Bahia. O
meu destino era o Rio de Janeiro mesmo - diz o compositor - pois era
aqui que eu tinha a impressão de que algo poderia realmente acontecer.
Chegado aos dezessete anos de idade e com uma produção ainda
desconhecida, João do Vale pôs-se a trabalhar fazendo contatos no meio
artístico. Corria o início da década de 50, a Rádio Nacional vivia um
período de apogeu e foi nesse clima que começou a despontar a sua
estrela. "O Zé Gonzaga, irmão de Luiz Gonzaga - conta João - gravou a
minha primeira música e logo depois viria o primeiro sucesso com Estrela
Míúda, com uma gravação de Marlene. Ainda nessa década estourou o Pisa
na Fulô, com o Ivon Cury que aderiu ao gênero mais brejeiro pois ele era
cantor de músicas francesas. Quando ele começou a gravar músicas como o
Miudinho, de Zé Dantas e a minha música, o Pisa na Fulô ele começou,
juntamente comigo a se popularizar mesmo, a fazer sucesso - mas o meu
primeiro sucesso, sem dúvida, foi o Estrela Miúda na voz de Marlene.
Quando chegou a década de 60 eu já tinha muitas músicas gravadas. O
Jackson do Pandeiro gravou A Ema Gemeu, que estourou também."
“A onda quebrou na praia E voltou correndo ao mar Meu amor foi como a onda E não voltou prá me beijar"
Curiosamente, uma amizade que teria mudado bastante as relações de João
do Vale com o meio musical e artístico levando-o inclusive aos
basti-dores do teatro foi a de Cartolaque, segundo Tarik de Souza,
gostava muito do João do Vale para cantar tio Zicartota e foi lá que a
timidez que o caracterizava bateu asas. O pessoal acabou gostando dele e
daí surgiu a idéia da montagem do Opinião, o seu primeiro grande show
que marcou o lançamento da música Carcará, ocasião em que conheceu,
obviamente, o Vianinha nascendo daí suas ligações com Zé Keti, Nara Leão
e outros. É o próprio João do Vale quem nos relata: "no período em que
nos apresentávamos em São Paulo, conheci um jovem que era estudante de
arquitetura. Então eu o vi cantar o Pedro Pedreira e me acerquei dele.
Era, lógico, o Chico Buarque. Então eu fiquei admirado. Puxa, você um
estudante, com uma música dessa; fazendo um trabalho desse! Eu me
admirei muito, como até hoje, admiro tudo o que ele faz. Eu tenho muitos
amigos. Não é pela fama que ele tem que eu estou dizendo isso. O Chico
para mim é mais que tudo. Outro que conheci bem novo, ainda menino, foi o
Gonzaguinha. Eu o levava então para muitos lugares, para o Beco das
Garrafas, enfim para contatos que acabaram interessantes para ele, para a
sua formação. O Gonzaguinha, não é preciso falar sobre a qualidade
dele... mas foi um talento desaparecido muito cedo."
" Mestre Costa na fazenda Hoje só abre cancela Mocidade deixou ele
Ele também deixou ela A velhice montou nele Ele desmontou da cela"
João do Vale olha para o alto,
fixamente. Seus olhos viajam com sua imaginação, relembra a infância de
menino pobre, quando vendia doces para ajudar no sustento da família.
Ele fala com esforço, pois as seqüelas da doença ainda não o deixaram de
todo. Relembra sua vida do sertão que lhe inspirou tanto. Mostra a
comenda recebida do presidente Sarney, maranhense como ele; as honrarias
a que fez jus; relembra o "Carcará" e "No Pé do Lajeiro", a presença de
Tom Jobim, os pés descalços em contato com a terra e a sua modéstia.
Apesar de anos de rico trabalho, João do Vale vive há anos na pobre Rosa
dos Ventos (periferia de Nova Iguaçu/RJ) em uma modesta casa. Um lugar
simples onde pode igualmente caminhar descalço, cercado de gente simples
e sem cobrança de qualquer espécie, como em sua longínqua Pedreira,
onde vai matar saudades dos amigos e do tempo que lá ficou. João é poeta
contador das coisas do seu querido sertão maranhense, da vida
ribeirinha, dos peixes nos bares rústicos, das festas populares, das
questões dos homens frente a seus desafios. O contador da esperança e do
amor à natureza. Diríamos que nesses sessenta anos completados no dia
onze de outubro João do Vale, como poucos, foi um arguto leitor das
páginas do livro da vida. Realmente poucos as leram como ele e poucos
passaram lições tão profundas e com tanta simplicidade. Tanto num mote
(Pisa na Fulô) quanto numa canção bem humorada e brejeira como Pipira,
sente-se do quotidiano a observação divertida e pura do compositor de
Carcará. Suas músicas inundaram o país com alegria, surpresa e
sabedoria. O seu trabalho vai além fronteiras. Chega à África, aos
Estados Unidos e a Cuba. Incansável, trabalha na formação de trilhas
sonoras para filmes como no Mundo da Lua e Rico Ri À -Toa onde foi
assistente de Roberto Pari a no primeiro filme que fez com Zé Trindade.
Hoje João do Vale convalesce de uma trombose que o tirou por longo tempo
do convívio artístico e de sua atividade, mas as visitas que recebe com
freqüência dos muitos colegas dão bem a mostra do quanto é querido por
todos os que sempre o acompanharam em sua brilhante trajetória.
Secretariado pelo amigo Luiz Guide que cuida dos contatos com Bibi
Ferreira para a remontagem do Show Opinião e do lançamento do disco João
do Vale II com Chico Buarque, o nosso Carcará aguarda que o tempo lhe
devolva todos os movimentos e a sua privilegiada voz para que possa
voltar ao lugar que ama. O palco e o contato com o seu público. Como ele
próprio diz no seu belo poetar:
"...Arapuá esperando Urícuri madurecer Catingueira fulorando Sertanejo esperando chover...”
Sueli Dantas
Publicado no Jornal Inverta nº 19 – 1º a 15 de novembro de 1993
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